A importância da primeira infância para a biografia humana é um dos maiores temas pedagógicos da atualidade. Isto tem vários motivos. Notou-se que a infância mudou sob a influência da civilização influenciada pela técnica. As crianças que atualmente entram no primeiro grau são diferentes daquelas que entravam há 25 anos: são nervosas, com um comportamento desarmônico, a saúde é frágil, e não se pode mais exigir tanto delas quanto era possível antigamente. Isto tem suas consequências na vida mais tarde. O resultado de pesquisas feitas nestes últimos anos mostra que em ¼ da população adulta das grandes cidades podem-se verificar distúrbios cuja origem está na tenra idade infantil. Distúrbios como neurose, doenças psicossomáticas, distúrbios na personalidade e vícios.
Estes fatos indicam a necessidade de criar na primeira infância um fundamento que terá de perdurar por toda a vida, e em muitas crianças este fundamento vital já se torna quebradiço na época em que elas estão em formação. Assim sendo, tem-se dado um peso cada vez maior às questões da educação na primeira infância.
A responsabilidade perante o desenvolvimento da criança pequena também se fez através de observações feitas há anos nos países anteriormente socialistas. Lá as crianças de dois anos, e até mesmo já em seu primeiro ano de vida, eram postas em escolas maternais, para que as mães pudessem trabalhar em fábricas, escritórios e outros lugares, a fim de darem sua contribuição produtiva ao Sistema Nacional Socialista – isto, porém, em prejuízo das crianças como demonstram as observações de médicos húngaros. As crianças do maternal adoeciam com muito mais frequência que aquelas que podiam passar seus primeiros anos em casa. Tem-se, portanto, um juízo claro sobre as consequências do meio-ambiente educacional na criança pequena. Os dados que se seguem comprovam: adoeceram com pneumonia 1,5% das crianças que ficaram em casa e 11% das crianças do maternal. A gripe atingiu 20% das crianças que ficaram em casa e 60% das crianças do maternal. Paralelamente a esta fragilidade da saúde, surgiram distúrbios no desenvolvimento da fala e no comportamento social. Isto se tornou tão grave na Checoslováquia que as mães passaram a receber três anos de licença-educação depois do parto.
Se quisermos ir de encontro a crescente responsabilidade pedagógica em relação à criança pequena e ao desenvolvimento humano em nossa civilização baseada na técnica, necessitaremos de uma antropologia da primeira infância, um conhecimento dos processos evolutivos na primeira infância, uma visão clara das condições que propiciam este desenvolvimento e assim, obter conceitos concretos sobre as consequências destes processos de desenvolvimento na biografia subsequente.
A SUPERAÇÃO DA FORÇA DA GRAVIDADE ATRAVÉS DA VONTADE
Pode se conhecer aspectos essenciais do caráter específico do desenvolvimento da primeira infância quando partimos daquele processo que leva à maior transformação dentro dos primeiros anos: a conquista da postura ereta. Temos, porém de observar esse processo sob vários aspectos. Quando acompanhamos o processo, o esforço que a criança faz nos primeiros meses para levantar a cabeça, como ela luta durante muitos meses contra o peso do seu corpo para finalmente, ao postar-se de pé, conquistar por fim a vitória sobre a força da gravidade, desde os pés até a cabeça, então compreenderemos que a criança é fundamentalmente um ser ativo. É um ser que, já em suas primeiras semanas e meses, desenvolve a partir de seu próprio esforço, no qual, desde o início atua uma capacidade fundamentalmente humana: a necessidade de não permanecer no que foi recém-adquirido e sim continuar se esforçando para além do já conseguido. Hegel disse, em suas palestras histórico-filosóficas, que o desenvolvimento se fundamenta numa atividade interior, o “impulso para a perfeição cada vez maior”. Este anseio mais profundo já está presente na criança pequena. Ele se manifesta naquela força com a qual a criança vai superando, cada vez mais, a gravidade. Esta força é a vontade, a partir da qual o homem sempre atua quando se confronta ativamente com obstáculos. Para não haver mal entendidos, faz-se necessário esclarecer que o termo “vontade” não significa aqui o propósito de executar algo. A vontade é aquela força íntima que dá origem a ação, a execução. Com ela o homem vivencia sua atividade como vinda dele mesmo. A vontade é a própria força primordial do homem.
Quando a criança se eleva para a vertical em seu primeiro ano de vida, ela toma posse e permeia todo o seu corpo com essa força da vontade. É desta forma que o corpo se torna uma posse individual da criança.
A postura ereta significa a superação total da força da gravidade pela atuação soberana da vontade e, por outro lado, a exposição máxima ao equilíbrio.
Nas ciências já se discutiu muito sobre o motivo pelo qual o homem, ao contrário dos animais, adotou esta posição tão insegura de equilíbrio. Buscar a resposta em causas externas só leva a especulações e a resultados insatisfatórios. A criança não se apoia exteriormente sobre quatro pernas como o animal. Ela mantém seu equilíbrio através de uma força interior e, através disto, ela tem a seguinte vivência: eu tenho meu centro em mim mesmo; sou um ser que tem um centro em si mesmo. É por meio da vontade que supera a força da gravidade, que o homem se torna centralizado em si mesmo. Isto indica que a vontade tem características de Eu. Como Eu, designamos aquele âmbito a partir do qual o homem atua por si mesmo e onde ele experimenta concomitantemente o centro em si mesmo. Portanto, temos de fazer uma distinção entre Eu e autoconsciência, consciência do Eu. A consciência do Eu só aparece em torno dos três anos, quando certas regiões do cérebro (no córtex) adquiriram um certo grau de diferenciações. O Eu está presente desde o início da vida.
A REESTRUTURAÇÃO, PELO EU, DO CORPO HERDADO
A compreensão do desenvolvimento na primeira infância ocorre quando estudamos a forma como o Eu atua no corpo da criança. Inicialmente ele atua nos sistemas muscular e ósseo. Quando, através da aquisição vertical pela vontade, a criança toma pose da nuca, das costas, da bacia, das pernas e dos pés, vai se desenvolvendo a musculatura, que se diferencia entre as fibras musculares físicas, que se contraem rapidamente, e as tônicas que atuam com força. A vontade também atua na alteração do sistema ósseo. Em primeiro lugar, a criança se esforça para levantar a cabeça e voltá-la livremente para o meio ambiente. É neste processo que se forma a curvatura característica da coluna vertebral na altura da nuca, a chamada lordose cervical. A criança recém-nascida ainda não tem esta curvatura. Ela se forma por meio do esforço feito para sustentar a cabeça livremente, ou seja, na superação da força da gravidade. De início, a curvatura aparece temporariamente, para se tornar uma configuração permanente dentro de cinco anos.
Quando a criança se esforça para ficar de pé livremente, lá pelo fim do primeiro ano de vida, também há a transformação da parte inferior da coluna vertebral. Isto se dá quando, em relação à sua posição anterior, as pernas dão uma virada e se instalam debaixo do tronco, dando origem à curvatura no âmbito lombar, a chamada lordose lombar, que também se torna, dentro de cinco anos uma forma permanente.
A coluna lombar não tem sua forma humana por hereditariedade e nem pela maturação determinada geneticamente, mas sim, pela vontade “egóica” da criança, que atua no esforço feito para a aquisição da posição livre da cabeça e do ficar em pé e andar. A criança não toma simplesmente posse de seu corpo, ela o reestrutura até o sistema ósseo. Quando então, o ser humano se coloca na postura sentada ou de pé, as curvaturas da coluna se acentuam pelo peso da cabeça e do tronco. O ser humano está constantemente se contrapondo à força da gravidade, ele está procurando continuamente se manter na vertical. Pela reestruturação da coluna ele se revela como Eu dentro do corpo.
A reestruturação do corpo também atinge os quadris, as pernas e os pés. No recém-nascido, as pernas são visivelmente mais curtas e os joelhos virados para fora. Juntamente com a aquisição do ficar em pé e andar, a pernas crescem contra a força da gravidade e são reestruturadas. A nova configuração se realiza até o sétimo anos de vida. Nela se revela uma grande luta com o peso do corpo, uma atividade sustentadora. Portanto o corpo adquire também nas pernas uma forma que mostra, na superação da força da gravidade, a atuação do Eu. Impressionante é a reestruturação dos pés, onde o peso do corpo se faz mais intenso e onde, através do ato de andar, e principalmente quando a criança anda na ponta dos pés, surge a arcada do pé. Vemos aqui novamente até os sete anos, uma configuração que surgiu de uma vigorosa luta contra a força da gravidade. Ela é a base sobre a qual o homem pode se manter em equilíbrio e é a condição para um andar leve e flexível.
O desenvolvimento na primeira infância é um acontecimento que atua profundamente para dentro das regiões inconscientes do corpo. A criança recém-nascida tem um corpo estruturado por leis e forças da hereditariedade. Inicialmente seu corpo é uma organização basicamente impessoal, que é reestruturada pelo Eu. Nesta reestruturação o Eu permeia o corpo e nele se expressa. Quando observamos os novos traços fisionômicos que vão surgindo, percebemos que a criança adquire uma configuração marcada pelo Eu, que vai até o sistema ósseo. Na aquisição da postura ereta tem início um processo ao qual, geralmente, não é dado o devido valor. Trata-se da individuação do corpo humano.
A IMPOTÂNCIA DA POSTURA ERETA
Que importância tem a postura ereta para o desenvolvimento do homem? Nesta postura o ser humano está concomitantemente ativo e passivo. O corpo é perpassado por uma força da vontade que, em seu estado de quietude, não contem impulsos para o movimento, tal como ocorre na organização corpórea dos animais. É nisto que consiste a nobreza da postura dos ser humano. Por meio da quietude interior, a vontade está receptiva para as intenções de movimentos que o ser humano recebe do seu pensar. No pensar, podemos nos conscientizar daquilo que tem sentido, que é exigido pelas situações da vida. Tais pensamentos podem por meio da resolução, levar ao movimento e a atuação. No agir, o homem realiza estes pensamentos.
Quando o ser humano está num estado de quietude e introspecção, cria pensamentos; ele chega à experiência da autonomia espiritual e, ao realizar tais pensamentos através de sua organização volitiva egóica, ele chega à experiência da liberdade. Através da verticalidade surge um fundamento essencial para a biografia consequente. O fundamento para a autonomia é a liberdade.
Atualmente em muitas crianças este fundamento já tem lesões. Nos países de civilização tecnicista, há muitas crianças que, pela influência dos meios de comunicação, não tem a capacidade de se manter tranquilamente na posição ereta. Sua organização volitiva é permeada por uma inquietude interior. Estas crianças com hipermotricidade chamam a atenção por sua motricidade inquieta, sua postura corpórea instável, sua incapacidade de permanecer por mais tempo numa determinada postura corpórea, mas também por serem desajeitadas, com falta de coordenação e precisão no transcurso dos movimentos. Esta inquietude inunda todo os seu ser, proporcionando uma tendência para a dispersão, falta de concentração e um clima interior de instabilidade. As crianças são ameaçadas no centro de sua essência humana, na disposição para a autonomia espiritual e para a liberdade – e também na sua capacidade de aprendizado, porque para se aprender alguma coisa temos de absorvê-la e digeri-la no estado de quietude interior.
O SIGNIFICADO DO APRENDER A FALAR E DA LINGUAGEM
Aquilo que o homem adquire em sua primeira infância por meio da postura ereta acrescenta-se, no desenvolvimento humano, o significado do aprendizado da fala e da linguagem. Isto abrange muito mais do que se imagina. Existem crianças que tem capacidade auditiva acústica perfeita, mas são incapazes de captar uma configuração fonética de palavras. A estas crianças sensorialmente áudio-mudas falta o sentido da linguagem. A isto, geralmente está ligado um comportamento difícil em relação ao meio ambiente. Estas crianças manifestam, sem escrúpulos, o que lhes vem à mente. São desajeitadas, impertinentes e não se deixam guiar. Quando conseguimos por meio de uma terapia geralmente muito trabalhosa, despertar nelas o sentido da palavra ou da linguagem, seu comportamento desenfreado desaparece e elas se tornam abertas a seu meio ambiente. Pelo visto, a mera percepção da palavra já tem uma importância para sermos humanos.
O que ocorre na percepção da linguagem? Ao ouvirmos, por exemplo, uma palavra como Wasser (água), captamos uma configuração fonética. Podemos nos concentrar somente naquilo que se apresenta na configuração fonética, ou seja, dirigir toda a nossa atenção à configuração fonética, deixando de lado seu significado. Na palavra Wasser, vivenciamos no fonema inicial “W” algo que vem de dentro para fora, que em seu movimento, ao contrário do “F”, é um pouco refreado e chega a ter uma leve vibração no movimento que se dirige para fora. Na vogal seguinte, vivenciamos uma grande abertura e depois nos “ss” uma atuação forte e clara que passa e permeia intensivamente um obstáculo. No fonema “e” segue-se um certo gesto retido. Finalmente soa a configuração fonética “R”, numa forte dinâmica interior de um movimento rotativo. “Wasser” é um acontecimento gestual de fonemas. Percebemos que a configuração fonética “Wasser” tem um relacionamento com aquilo que é a água corrente. Na palavra água, percorrendo o mesmo caminho, temos o “a” inicial que suscita um gesto aberto de dentro para fora. No fonema “g”, vivenciamos algo retido, estancado em seu fluxo. No “u” temos algo como um estreitamento prolongado no caminho que se abre novamente no último “a”. A nuvem se abre, a água cai, “a”. Na terra, sua queda é retida, “g”, mas logo ela penetra na terra como por um túnel, “u”, para voltar à luz do dia na fonte, “a”.
Quando penetramos auditivamente uma palavra, na forma indicada acima, acompanhamos interiormente sua configuração fonética gestual. Por intermédio das pesquisas feitas pelo americano W.Condon, sabemos que fazemos isto inconscientemente sempre que ouvimos palavras. Condon filmou, com uma filmadora de rotação muito rápida, pessoas falando e ouvindo, analisando depois, criteriosamente, as imagens. Ele descobriu que a pessoa, ao ouvir as palavras executa movimentos muito sutis – movimentos da cabeça, dos ombros, dos braços, mãos, dedos e mesmo movimentos dos pés. Estes movimentos, porém, são tão sutis que não os percebemos normalmente. Ao ouvir o “é”, fonema inicial da palavra “ask” (perguntar) na pronúncia americana, a cabeça é movida levemente para a esquerda, os olhos ficam parados, a boca é um pouco fechada e os lábios vão um pouco para a frente, os quatro dedos das duas mãos se curvam um pouco e o ombro direito é levemente virado para dentro. O resto do corpo permanece parado. Em seu conjunto, temos aí um gesto peculiar que é executado sempre que ouvimos o “é” e que tem um relacionamento interior com o fonema.
Torna-se evidente que só percebemos uma palavra quando executamos, sutilmente, seus gestos fonéticos em sincronia com o ouvir. Ao ouvir a fala, a pessoa participa, com sua própria organização motora, daquilo que a outra pessoa fala. O ser humano se abre ao outro até às profundezas de sua organização. A criança “áudio-muda” é, ao contrário, um ser fechado em si mesmo, falta ao seu interior o relacionamento com o interior do outro, que se manifesta pela palavra.
Esta assimilação da linguagem da outra pessoa tem seu inicio muito antes de a criança pronunciar sua primeira palavra. Pelas pesquisas de Condon, sabe-se também que, já no primeiro dia de vida, o recém-nascido acompanha a linguagem do seu meio ambiente com movimentos sutis do corpo. Quando então a criança começa a falar geralmente lá pelo segundo ano de vida, ela ainda é bastante desajeitada. Para pronunciar corretamente o gesto fonético de uma palavra simples, ela tem de desenvolver uma capacidade de coordenação imensamente complicada. Ela terá que expirar de uma forma bem mais complicada do que até então. (Através dos músculos intervertebrais e de uma parte da musculatura dorsal). Órgãos com os quais ela assimilava a alimentação até então, (maxilar, língua, lábios e bochecha), terão de se mover conforme outras leis. Também a laringe tem de ser dominada nas suas diferenciações. Mas, acima de tudo, o maxilar tem de coordenar seus movimentos para uma tarefa mais elevada, da qual participa mais de um músculo. Como na aquisição da verticalidade, também aqui ocorre uma transformação da organização. É novamente a criança que, por meio de seu próprio esforço estrutura a organização da fala. Na sua luta para conseguir a articulação correta é que ela estrutura a organização à partir das leis que formam sua língua materna.
O desenvolvimento no âmbito corpóreo está ligado ao desenvolvimento da alma infantil. No aprender a falar, a criança se liga intimamente à configuração fonética das palavras. Isto provoca uma sensação diferenciada perante a língua. Em muitos casos pode-se perceber que as crianças pequenas vivenciam os gestos fonéticos muito mais intimamente do que os adultos. Nas palavras da língua e na melodia das frases é que se forma e se diferencia o sentir da criança. A língua captada pela criança em seu meio ambiente tem, portanto, uma grande influência sobre sua vida de sentimentos. A criança é estimulada para o desenvolvimento de sua alma por uma linguagem rica e sonoramente bela. Seu sentir será pouco diferenciado por uma linguagem pobre e grosseira.
Através do sentir que se estruturou a partir da língua, o ser humano poderá captar posteriormente aquilo que vivencia no encontro com outras pessoas. Poderá vivenciar e compreender interiormente aquilo que não está explícito nos conceitos do que está sendo exposto. Através da maneira como a criança aprende a falar, ela poderá, ou não, tornar-se uma pessoa aberta para outras pessoas. Sabe-se por meio de investigações psicológicas que através de conversas, de contar e ler histórias em família, a criança não chega apenas a adquirir uma linguagem diferenciada, mas também, capacidades sociais positivas.
O aprender a falar não faz do homem apenas um ser comunicativo no âmbito cognitivo, mas é também de grande importância para as dimensões sociais no relacionamento humano. Nos tempos atuais, onde existe uma supervalorização do visual, o cultivo da linguagem se tornou uma nova tarefa pedagógica. Pois esta supervalorização de nossa civilização tecnológica, do visual em relação a fala, traz uma ameaça ao desenvolvimento humano e, acima de tudo, ao âmbito das capacidades sociais.
A SENSIBILIDADE DOS ÓRGÃOS INFANTIS
Tudo o que foi mencionado até agora nos suscita perguntas sobre a “moldabilidade” incomum do corpo da criança pequena. Nenhum outro ser da terra tem o corpo tão moldável e aberto para o que vem do âmbito da alma e do meio ambiente, como a criança pequena. Para compreendermos esta plasticidade temos de observar o corpo da criança com mais exatidão, assim como a configuração especial da vida anímica da criança.
Nos órgãos do corpo humano ocorre um fenômeno que frequentemente passa despercebido. Os órgãos não se apresentam com formas prontas; estão ininterruptamente em formação. Ocorre neles uma regeneração constante através da qual são elaboradas as formas. Isto se torna visível nos processos de cura, assim como também na renovação constante das substâncias. Em cada órgão atua um campo de forças vivas e formativas. Na criança pequena reinam relacionamentos mais dinâmicos do que nos adultos. Seus órgãos são mais moles. Neles não atuam apenas uma renovação de formas iguais as anteriores.
Na criança recém-nascida as formas dos órgãos são muito mais simples do que aparece na criança em idade escolar. Às vezes são até bem diferentes daquelas formas mais conhecidas por nós. Estes órgãos simples passarão por uma transformação. O campo das forças plasmadoras se transforma e cria formas mais perfeitas. A organização das forças formadoras passa por um desenvolvimento juntamente com todo o corpo da criança pequena. Mais tarde, a formação dos órgãos se estabiliza; em sua maior parte as forças formadoras adquirem uma configuração estável. Na criança pequena, porém, a formação orgânica está em processo, não está definida, e com isto está aberta para novos impulsos de formação. É este o motivo pelo qual os órgãos do corpo infantil, em seus primeiros anos de vida, são tão moldáveis e abertos para influências transformadoras vindas do âmbito anímico e do Eu.
A vida anímica da criança pequena também tem um transcurso bem diferente do da criança em idade escolar ou do adulto. Quando o adulto olha para um objeto, a impressão recebida pelos olhos desencadeia uma atividade anímica. Surge uma representação através da qual ele conhece o objeto. Talvez se faça presente no interior um sentimento de agrado ou desagrado, mas pensar e sentir são em grande parte independentes entre si.
Na criança pequena, a configuração reinante é outra. Ela vê, por exemplo, um copo caído e diz espontaneamente: “o copo está cansado”. Uma criança de quatro anos observa o suporte de uma máquina fotográfica montada e diz: “mas este é orgulhoso”. A criança vê as coisas de maneira diferente do que do adulto. Ela não forma apenas uma representação mas, concomitantemente executa interiormente o que vê lá fora. Ao acompanhar concomitantemente o estar deitado o copo, ela sente “cansado”, e na forma esguia e alta do suporte da máquina ela sente interiormente: “Isto é orgulhoso”.
Tudo o que a criança vê e compreende através de suas representações, evoca imediatamente um “sentir junto” interior. É assim que o exterior se torna gesto na criança; as percepções tem um caráter fisionômico.
Só podemos compreender a vida anímica da criança quando nos fica claro que representar, sentir e querer não são relativamente autônomos como no adulto, mas que de imediato atuam conjuntamente Aquilo que a criança vê é “co-vivenciado” imediatamente pelo sentimento e “co-realizado” por um movimento volitivo.
Cada sentimento é um movimento da alma. Este movimento pode ser tranquilo ou excitado, superficial ou profundo. A dinâmica do sentir age nas variações do ritmo respiratório e nas mudanças das batidas cardíacas assim como numa irrigação sanguínea, mais forte ou mais fraca dos músculos cardíacos. Os movimentos volitivos interferem nos processos vitais da musculatura e se revelam no movimento. Pela interligação interior da representação, do sentimento e da vontade, tudo o que a criança pequena vê atua imediatamente nos órgãos do seu corpo. Por sua característica moldável, os órgãos são incrivelmente sensíveis e influenciáveis. As vivências da alma agem sobre eles e imergem nos processos formadores vivos que atuam no meio ambiente. Aspectos anímicos passam para a formação orgânica.
A PREDISPOSIÇÃO PARA A SAÚDE OU DOENÇA
Fica esclarecido, contudo o que já foi abordado, que no processo de verticalização e no esforço para aprender a falar, atua o Eu da criança formativamente no corpo. A sensibilidade dos órgãos em relação aos processos anímicos é a chave que nos possibilita compreender muitos fatos do desenvolvimento na primeira infância e também, por exemplo, a predisposição para doenças psicossomáticas. Isto será exemplificado na neurose cardíaca.
Pessoas que sofrem de neurose cardíaca frequentemente têm palpitações fortes e sintomas sístoles extras. Ficam rapidamente cansadas e exaustas; sofrem de falta de ar ou de sensações de angústia em geral; são facilmente irritáveis e têm uma inquietação interior. Elas têm acima de tudo uma postura anímica básica de medo. As mães de pessoas que sofrem de neurose cardíaca, via de regra, eram pessoas inseguras. Quando uma criança percebe principalmente em seus primeiros anos de vida o olhar inseguro e preocupado da mãe, seu semblante amedrontado, seus movimentos inseguros, o estremecimento quando surge algo inesperado, vive então concomitantemente dentro de tudo o que provoca estas manifestações – ou seja, medo, a postura medrosa. Como na mãe, também na criança o coração começa a bater mais forte e irregularmente. O medo percebido e “convivido” age sobre a respiração e a batida cardíaca da criança pequena. No coração da criança pequena atuam, como nos outros órgãos, as forças formadoras que transformam sua configuração, assim como transformam sua postura e sua musculatura. Neste processo de vir-a-ser, o medo penetra e participa da formação do coração da criança. É inoculada no coração da criança a disposição para reações de medo. E, assim, a criança “leva para o resto da vida a configuração plástica”; pela observação de sua mãe insegura, “moldou plasticamente em si mesma”, Rudolf Steiner. É por isso que o coração bate mais depressa e irregularmente mesmo por motivos de pouca importância. Por causa deste seu coração, a pessoa mostra o aspecto básico de inquietação, de constrangimento e medo. Este está sempre presente porque vive em seus órgãos e, acima de tudo, em seu coração. Portanto, desde a primeira infância esta pessoa tem o organismo predisposto para o medo e a inquietação, por ter assimilado na organização moldável do seu corpo, quando ainda era criança pequena. O meio ambiente da criança, depois de adulta torna-se distinto de vida. Quando a criança vivencia imitativamente seu meio ambiente pela interligação da percepção (representação), do sentimento e da vontade, trata-se de uma ocorrência psicossomática, ou seja, o germe para a saúde ou a doença.
Este convívio íntimo com o meio ambiente leva a outros fatos importantes do desenvolvimento infantil. Pode se observar como as crianças pequenas param suas atividades assim que sua mãe se retira do aposento onde estão. A criança não percebe meramente a mãe, ela se vivifica no olhar, nas feições e nos movimentos da mãe.
Uma observação minuciosa do psicólogo americano H.M.Skeels, nos mostra quão profundamente o interior da criança pode ser vivificado por outras pessoas. Na década de trinta, Skeels tirou treze crianças de um grupo maior de crianças retardadas e as entregou aos cuidados de algumas senhoras e jovens mais velhas que também viviam num lar para excepcionais. As senhoras e as jovens desenvolveram uma grande simpatia pelas crianças pequenas. Elas brincavam com as crianças, falavam bastante com elas e faziam passeios. Com isso, a vida anímica das crianças foi tão estimulada, que o quociente de inteligência subiu 28 pontos em pouco tempo (de 64 foi para 92). Depois de trinta anos, Skeels voltou a examinar aquelas crianças que então já eram adultas. Aquelas que não tiveram cuidados especiais ainda viviam em instituições, se já não tivessem morrido. As outras, porém entrosaram-se na vida e ganhavam para seu próprio sustento. Quase todas tinham cursado o colegial e algumas até cursaram a universidade.
A criança pequena necessita de outras pessoas porque é só nelas que ela pode verificar o que carrega dentro de si mesma como predisposição. Quando tais pessoas faltam, então suas predisposições e dotes ocultos não podem despertar e frutificar na vida; ficam nas regiões da inconsciência. Exteriormente, a pessoa estará inserida na vida, mas não conseguirá se realizar como um ser anímico e espiritual. Pode aparecer, então, a situação trágica do hospitalismo.
Há portanto, dois fatores que estimulam o desenvolvimento do ser humano em sua primeira infância: primeiro o exemplo saudável, ou seja, pessoas com uma linguagem rica, ativas, com senso social e cientes das consequências de seus atos. Depois, dedicação humana, que vivifica a criança interiormente; que desperta e estimula as predisposições existentes nas profundezas. Mas também existem dois fatores que retém e prejudicam o desenvolvimento sadio da criança: primeiro, os exemplos doentios: adultos com nervosismo, inquietude medrosa, emoções desenfreadas, linguagem pobre etc. Depois, a falta de dedicação, de calor e interesses humanos. Estes fatos são de grande importância porque o destino da vida de uma pessoa é intensamente determinado por eles. A infância também está presente no adulto: nos fundamentos da vida, firmes ou oscilantes, de sua biografia.
Ernest Michael Kranich, escrito para a revista “Erziehunskunst” n1/92
Tradução de Christa Glass. Revisão de Ruth Salles para o Centro de Formação de Professores Waldorf, SP.